domingo, 26 de dezembro de 2010

Um Nazgul na Calçadinha




Nado era um típico Nerd João Pessoense, viciado em Senhor dos Anéis, misantropo, devorador de livros, e pronto pra cursar medicina. Não tinha amigos, muito menos paqueras. Estava estressado com o vestibular, quase entrando em parafuso com a vida ridícula que levava, quando um dia teve uma ideia genial:

- 'Vou me vestir de Nazgul daqui em diante.' Disse Nado. Comprou o que precisava, manufaturou as vestes pretas e as armaduras metálicas de verdade. Sua mesada era vasta como os domínios do Mestre Sauron em Mordor, e sua sabedoria na manufatura de cosplays ultrapassava a de Saruman, Gandalf, Elrond e Radagast juntos.

Ficou pronta. Foi jantar com ela. Os pais na mesa, dois funcionários públicos conservadores, olhando pro "filho" encapuzado, sem o rosto à mostra, parecendo o demônio entrando na sala de jantar.

- 'Melhor não dizer nada', sussurrou a mãe. 'Vai passar, é só uma fase, uma neurose'.

Nado dormiu com a fantasia. Não antes de fazer algumas reservas para quando precisasse colocar pra lavar as outras. Virou um exímio costureiro de mantas negras longas. Pena que não era mais Idade Média. Ia ter que ser médico para ganhar a vida, ou coisa do tipo.

Passou a semana inteira, em todos os lugares vestido de Nazgul. Na padaria, no Shopping Manaíra, na Calçadinha. Não é necessário descrever a reação das pessoas. Poucos ousavam perguntar, e os que perguntavam eram respondidos com 'A sombra da morte cai, as vezes, de forma alegórica, e outras de uma forma um tanto literal, sobre nossas almas'.

De pânico a ataque de risos, Nado não passava despercebido. Começou a chamar muita atenção.

Em alguns lugares, claro, ele não era bem vindo. No colégio por exemplo, ele so pôde usar uma capa mais leve. 'Nada na "legislação" do colégio proibia tais "casacos"', disse em sua defesa ao diretor, que relutantemente cedeu sob pressão de um processo, e talvez de uma espadada do "louco".

Fez amizades, talvez até seguidores. Outros Tolkianos o admiraram. Outros invejaram seu poder. Começou a ir para as raves vestido assim. Seu sucesso entre as garotas foi impressionante! Algumas tem uma queda por lunáticos, outras por góticos, outras por pessoas estilosas e originais. Ele, aparentemente, tinha tudo. Virou sócio do Excalibur.

Passou no vestibular de medicina. O tema da redação era um tanto difícil e estranho aos alunos e professores: a influência da literatura inglesa da década de 50 sobre a nossa vida contemporânea. Foi um dos únicos alunos a fechar a prova. Os professores, pelo visto, também eram fã de Tolkien. Nado daria a melhor aula sobre a geografia de Rohan, a história de Rivendel, os estudos sociológicos em Bree. Ele daria uma aula sobre tudo isso, imagine uma redação sobre a influência do seu escritor maior?

Nado parou de ser assaltado. Os malandros tiveram medo de sua possível 'Inskizofrênia', como diziam entre si enquanto ele subia a Epitácio, em seus mantos. E um uma vez um deles se atreveu a tentar, numa crise existencial 'Doido nenhum pode comigo e meu canivetezin'.

- 'Passa tudo', disse o assaltante. Nado só fez desembainhar a espada enorme, presente de formatura, afiada, e finalmente pôde ativar o sistema de som que além de transformar sua voz em sussurros macabros, soltava os guinchos de terror draconianos típicos do filme numa altura absurda. Coisa de arrepiar os cabelos até do Padre Quevedo. O assaltante correu até a Estação Ciência até o medo diminuir um pouco.

Eram hilariantes os momentos também em que ele passava na frente da Universal em momentos de culto. Indescritíveis. J.R.R. Tolkien teria inveja de não ter inventado essa narrativa.

Nado x Os Crentes da Universal.

Virou noticia. Passou no Jornal Nacional. Deu uma entrevista pro Fantástico, editada com tons debéis na transmissão. Não se importou. Tinha já uma legião de fãs. Os que tiveram coragem tentaram imitar, foi interessante no começo, mas nenhum teve tanto coração, afinidade e talvez falta de noção o suficiente para persistir. Ele permaneceu único e imaculado na sua originalidade.

No Carnaval ele chegou a se vestir de Witch-King. Nas festas Cosplays de Sauron. Como se o Nazgul se fantasiasse de seus mestres. Ele permitia nessas horas sair da monocromátisse mórbida. Mas seu cotidiano era Nazgul.

Começou a ir para a faculdade vestido assim. Teve problemas com a reitoria, mas nada que um agrado (e uma ameaça não resolvam). Ele já tinha amigos poderosos. Permaneceu na seu uniforme diário e inejoável. Uma simbiose entre a roupa e sua alma, como ele mesmo descrevera.

Ele manejando os corpos do IML era um espetáculo à parte. Filas e mais filas se formavam vendo aquela cena macabra e irônica.

Se formou. Passou na prova da residência. Foi pro Hospital de Traumas. Terminou e montou uma clínica psiquiátrica. Era temido e amado pelos pacientes. Sim, ele dava consultas como Nazgul. Não, ninguém o impedia.

Casou e etc.

Os anos foram passando, suas roupas amarrotando, envelhecendo, ficando cada vez mais reais. E a vida foi tirando aos poucos o que lhe fora dado no começo. E por fim, aos 82 anos, com uma vida próspera, Nado morreu. Vestido de quê? De Nado. Ou pelo menos era isso os que os parentes achavam. Mal era reconhecido sem suas lúgubres vestes augorentas. Uma linda senhora companheira, 2 filhos e 1 neto. Uma vida cheia de amores, realizações, desafios, conquistas, originalidade, racionalidade, força, e imaginação. Mas até no velório diziam que ele não batia bem da cabeça. Mas com 82 anos, poucos permanecem com a mesma lucidez da juventude não é mesmo?

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