sábado, 19 de janeiro de 2013


Calor e fluxo.


- Só vejo pontes, e não água.
- Onde há pontes, há água. Ou um abismo. Mas aqui ainda dá pra ver a terra molhada. Dá pra ver também os vestígios de uma vida rica, da fertilidade, da criatividade, e da lapidação que esta terra sofreu com o passar do tempo com o fluxo das águas que por aqui passaram. Águas castanhas, ou cristalinas, azuis. Não dá pra saber. Me diga o que você acha.
- Eu acho que se fossem azuis, essa ponte seria belíssima. Mas se fosse barrenta, os campos seriam mais férteis.
- É uma contradição comum entre a beleza e o trabalho. Mas há trabalho na beleza, e há beleza no trabalho. Muita beleza, inclusive. O que o seu coração mais anseia, meu jovem?
- Continuar batendo. Brincadeira. Hum, meus desejos... Eu gostaria de amar, e me sentir amado. Eu gostaria de ser belo como ás águas azuis. Mas sei que sou um rio barrento. Queria que alguém me amasse pela minha beleza, pelo que eu sou, e não pelos meus trabalhos, e pelo que faço.
- E por que esse desejo vão?
- Não sei. Talvez porque eu seja raso como o fio de água que escorre por aqui no verão.
- Talvez você seja profundo, e da ponte dê pra sentir o frescor que emana de você no inverno. Só basta você escolher se será terra rachada de verão, ou água abundante de inverno.
- Acho que todos escolheriam ser inverno, se pudessem.
- E o que os impede?
- O egoísmo de não dividir suas brisas.
- E depois dizem por ai que eu sou sábio. Tenho poucas coisas pra te ensinar agora, Gani. Você deve ver o mundo com seus próprios olhos agora.
- Para onde devo ir?
- Você sente frio ou sente calor?
- Sinto calor, mas o que isso tem a ver com meu destino?
- A natureza conspira para equalizar tudo, a matéria, a energia... O calor caminha naturalmente para os lugares frios, e assim as coisas funcionam. O Sol nos aquece, e assim nossa terra tem vida. É uma lei. Os antigos sabiam disso com muito mais clareza do que o nosso povo hoje sabe. Eles se esquecem. O erro, o pecado, está em juntar as coisas para si, estancar e impedir o fluxo natural das coisas. A morte, a dor, a tristeza também fazem parte do fluxo, assim como a vida, o prazer e a alegria mais sublime. Se você está com calor, precisa caminhar para lugares mais aprazíveis, e quem sabe um dia desfrutar do inerte.
- Você está falando que não devemos nos agasalhar?
- Pare de achar brechas retóricas nas minhas palavras. Você entendeu o que eu te falei, meu jovem. A capacidade humana de mudar o natural não é o pecado, o erro. Esse é nosso triunfo, é nossa alegria, nossa glória. Com nosso pensamento, podemos moldar nossa ação para transformar o que nos cerca. E se todo homem tivesse consciência disso, e conhecesse as leis do mundo e tivesse um direcionamento para suas ações, até os passarinhos seriam mais felizes. Seríamos capazes de transformar até a vida das lagartixas. Elas, que ao nos verem, correm, soltam a cauda, e têm este momento como o único que o sangue ferve, de medo. Pois nossos antepassados as comiam. Até hoje alguns ainda comem. Mas nossa capacidade de mudar as coisas até para elas poderia servir, se soubessemos mais do mundo, e tivessemos intuitos superiores.
- Eu não sinto vontade de melhorar a vida das lagartixas, nem gosto muito delas, inclusive. Tem olhos diferentes. Você sente amor nos olhos de um cachorro. De um réptil você não sente nada.
- O mais sábio dos homens aprende a amar até as pedras. Isso vem com o tempo. Mas é tolice pensar que se ganhe algo com isso, num suposto julgamento celestial metafísico. Se eu pegar a pedra que alguém ama, e joga-la com violência e partir a cabeça da lagartixa, e quebrar a pedra jutno, nada vai me acontecer. A lagartixa apenas morreu, e servirá de matéria para outros seres. Não serei julgado pela minhas ações contra a natureza. O julgamento reside no homem e na sociedade. A ideia de justiça também. O ato de matar a lagartixa não me torna mau, ou me envenena. Eu já estou envenenado, e já sou mau. O assassínio foi apenas o sintoma de algo que está podre em mim. A virtude e o vício se fecham em mim, na minha alma. Não numa vigilância celeste.
- Então o senhor não acredita em Justiça Divina?
- Acredito em exus e elementais, mas não em Justiça Divina. Afinal, minhas pitangas vivem sumindo da cesta, e eu nunca vi alguém viver uma vida absolutamente justa. Nenhuma pós-vida absolutamente justa, também. Só acredito no que vejo, no que sinto, e no que me diz algo. O que mais diz algo é o que menos fala também. Os maiores segredos residem nas menores nuances.
- O senhor também estava falando em frio, calor, para onde eu deveria ir...
- Sim, me desculpe. Perdoe este velho que divaga sobre as ex-águas. Você sente o quê mesmo?
- Calor. Está muito quente.
- Então você deve ir para um lugar frio, onde o seu calor se espalhe.
- E onde é frio?
- Certamente não nesta nossa terra. Além do mar. De onde eu vim é muito quente também, mas lá você não encontraria o que procura ainda. Quando começares a sentir frio, ai sim, talvez você deva passa nas Ilhas de veraneio.
- Pela lógica do senhor, se no mesmo dia eu sentir muito calor, e muito frio, eu deveria fazer o que? Nenhum lugar me seguraria por muito tempo, levado apenas pelo meu conforto físico.
- Que ingenuidade, você ainda pensa que o calor que habita em você é físico, é corporal, que vem dessa terra rachada. O fogo que vem de você e que precisa se espalhar por outras terras é outro, meu filho. É um fogo que a muito tempo eu não via, e que me traz lágrimas nos olhos por conseguir ver de novo nesta minha seca vida.


Mais um possível romance. Sempre maturando o projeto.

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