quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Herança

Cinzas, formol e mortalha. Deixo a vocês, ilustres desconhecidos, a única coisa que verdadeiramente possuía. Deixo minhas veias, por onde antes o sangue fluiu, quente, me aquecendo contra as noites frias, e que corria mais rápido quando eu via o meu amor. Deixo o meu pulso parado, as artérias coaguladas e o sangue seco. Deixo minha pele, meu couro curtido pelo tempo e pelo sol. Os meus ossos, que sustentaram minhas carreiras na infância. Deixo meus olhos, agora apagados, mas que um dia brilharam de medo, êxtase e dor. Deixo minha massa cinzenta, ex-maestra de um caminho estranho. Os meus músculos, que por sua vez potenciaram movimento; movimento é vida. Minhas vísceras, apesar de não saber o que vocês farão com elas. Meu pulmão, tão pouco usado, posto que podia ter fumado muito mais. Adorava fumar. Minhas mãos, e tudo que as envolve, as quais seguraram tanta coisa, até mesmo outras mãos. Minha garganta, avenida por onde tantos sambas passaram.

Vocês, desconhecidos, de certa forma podem ser considerados parasitas. Mas sem ressentimentos. Vocês usarão o que tive de melhor, e lhes deixo de - herança. Nobreza da intelectualidade, guardiões da biologia, sacerdotes da cura institucionalizada. Artesões da vida, alquimistas, que transformam o que não poderia ser em vida. Por isso, minha devoção e agrado.

Usem-me bem. Quando me olharem de novo, deitado sobre o metal frio, lembrem-se que ali eu vivi, e meu corpo conta a história, como hieróglifos inscritos em organelas. Cantei, dancei, amei, sofri, e sou o retrato do vosso futuro irremediável. Portanto, tracem o caminho do bisturi e dos dentes com a maior precisão e solenidade, pois até os vermes e os estudantes me devem gratidão.

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